Desassossego
- Ana Paula Maciel Vilela
- May 25, 2021
- 4 min read
Updated: Aug 5, 2021

Imagem Unsplash @manuelinglez
O ranger do vaivém da corda do balanço soava como uma reza que acariciava cada alma que vagava ali no Riacho das Almas. Não se recordava quando havia se balançado assim, assentada naquela hora do dia, sendo ela mesma, com os cabelos grisalhos soltos caindo sobre os ombros.
O céu azul sem nenhuma nuvem, que mais se parecia com a imensidão do mar que conhecera quando menina, parecia lhe sugar para o alto. Fechou os olhos e deixou-se levar para bem longe, lembrou-se da infância e de ter parado de brincar muito cedo. Não havia tempo. Lembrava das bonequinhas de sabugo de milho, da mãezinha e da filhinha, que o pai um dia lhe fizera, sempre juntas e, quando a mãe ralhava porque não tinha feito alguma tarefa direito, lhe batia com o cinto dependurado atrás da porta porque perguntava demais, seu desejo era se transformar durante a noite naquela bonequinha, sempre pertinho da mãe. Aquela mãe de sabugo de milho não falava. Não precisava. Ela só ficava pertinho. E era bom. E assim foi, até os doze anos quando a casaram com o filho do vizinho e ela se mudou para Riacho das Almas. Formou ali sua própria família que ia sendo dizimada, vítimas inocentes da cruel tradição daquele lugar esquecido no mundo.
O ressoar das rodas no cascalho da estrada anunciava Menino e Tonho regressando do vilarejo. As vozes dos filhos a trouxeram de volta de seus devaneios. Foram cedo para levar as rapaduras que estavam escuras e saborosas como há muito não ficavam. Tudo ganhava novas cores, sabores e cheiros à medida que os meses já iam longe e o passado ia se tornando lembrança.
Olhando Tonho descarregar o carro de boi com os mantimentos que trouxera, o semblante ora triste ora preocupado, lembrou-se dos dias passados logo depois que vingou a morte do irmão surpreendendo o vizinho despreocupado enquanto assoviava indo para o curral, na tocaia ao amanhecer. Os pesadelos constantes que os acordava com seus gritos se prolongavam com o passar dos dias. Mal completara vinte anos naquela vida de infelicidade, fastio e labor de sol a sol. Tanto ele como os vizinhos, os Ferreira, nasceram com essa sombra de tradição sobre suas cabeças e viviam cabisbaixos, indo a cada dia de encontro à sua sina. E os homens, de ambos lados, defendendo a honra e a terra. As famílias diminuindo e a dor aumentando, lavrada nas rugas e feições das mães, de todas nós; era a dor que carregávamos desde os ventres de nossas próprias mães. Sem sermos vistas ou ouvidas. Sem falar, levantar os olhos ou questionar qualquer decisão dos pais, irmãos, maridos e até dos filhos. Éramos mulheres ressecadas. A terra também, ressecada e improdutiva, absorvia o sangue dos jovens mortos em nome da honra, a tornando assim mais torturada, seca e esquecida.
Naquela tarde sentiu o cheiro forte de sangue seco subindo da terra enquanto pendurava as roupas no varal. Sentiu seu coração batendo na garganta e temeu pela vida do filho. Lembrou das palavras ditas a ele pelo do avô do falecido, no dia do velório do neto: “cada vez que olhar para o relógio e ver os ponteiros avançando, pense que para você será um a menos, um a menos”.
Era uma tradição tão antiga e austera que, mesmo sabendo-se quem matava quem, o vingador da honra precisava ir ao velório, mostrar respeito ao morto e à família. Envergonhado, arrastando-se pelo caminho como um animal, sem ter coragem para encarar ninguém nos olhos, aqueles meninos transformados em assassinos se vestiam de culpa e remorso contando eles mesmos os dias que lhes restavam. Como diziam por ali, a vida se dividia entre os anos vividos e os poucos dias que lhe restavam até serem eles mesmos o defunto velado.
A lamparina, com sua luz trêmula, desenhava nas paredes imagens indecifráveis. Sentados à mesa, ainda que acabrunhados, agradeciam por mais uma refeição. Era pouco. Mas ainda podiam se sentar juntos no final do dia e compartilhar daquele silêncio pesado, das sombras na parede e do ensopado de mandacaru.
Naquele dia, pra mais de ano, os bois se agitavam e mugiam enquanto Tonho e o pai lhe colocavam a canga. Da janela da cozinha, enquanto preparava o cozido de fubá para o café da manhã, observou o galo que se equilibrava na cerca de pau a pique e, cantando, anunciava o despontar de mais um dia, igual a todos os outros. O estampido do tiro rompeu o som dos bichos e o urro do marido tombando se fez ouvir longe. Tonho tentava enxergar e entender o que acontecia enquanto se refazia da queda causada pelo empurrão que o pai lhe dera. Ao longe, o pai deve ter percebido o brilho da espingarda e, sem hesitar, se colocou à frente do filho.
O sangue escorria do peito do pai que, suspirando agarrou a mão do filho e murmurou “eu nem me alembro mais o tanto que pedi pra santa pra eu pagá no lugar docês...acabô fio...acabô”. No rosto do pai uma serenidade nunca antes vista.
Enfim, a trégua.
Este conto foi um dos selecionados no Concurso Literário "Das Telas às Letras" 2021 baseado no filme "Abril Despedaçado" e faz parte da antologia em ebook disponível no perfil @album.de.memorias
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